sábado, 19 de maio de 2018

CRÔNICA DA VIDA QUE PASSA - FERNANDO PESSOA - COM GABARITO

Crônica da vida que passa
               Fernando Pessoa


      Às vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade.
          A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. É um plebeísmo porque estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes de sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas ações — ridiculamente humanas às vezes — que ele quereria invisíveis, côa-as a lente da celebridade para espetaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade.
      Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de gênio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu gênio; e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que é ele próprio. Mas, uma vez conhecido, não está mais na sua mão reverter à obscuridade. A celebridade é irreparável. Dela como do tempo, ninguém torna atrás ou se desdiz.
        E é por isto que a celebridade é uma fraqueza também. Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a pena sê-lo. Deixar-se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão ao baixo-instinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas vistas e nos ouvidos.
        Penso às vezes nisto coloridamente. E aquela frase de que “homem de gênio desconhecido” é o mais belo de todos os destinos, torna-se-me inegável; parece-me que esse é não só o mais belo, mas o maior dos destinos.

(FERNANDO PESSOA. Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Edições Ática, [s.d.], p. 66-67.)

01- Na crônica apresentada, Fernando Pessoa atribui três características negativas à celebridade, descrevendo-as no segundo, terceiro e quarto parágrafos. Releia esses parágrafos e aponte os três substantivos empregados pelo poeta que sintetizam essas características negativas da celebridade.
Resolução As três características negativas comentadas nos parágrafos apontados podem ser sintetizadas nos três substantivos que são os núcleos dos “tópicos frasais” ou frases introdutórias de cada um desses parágrafos: plebeísmo, contradição e fraqueza.

 02 - Considerando que os dicionários apontam diversas acepções para “obscuridade”, nem todas limitadas ao plano sensorial, verifique atentamente os empregos dessa palavra que Fernando Pessoa faz no terceiro parágrafo de sua crônica e, em seguida, identifique a acepção mobilizada pelo autor.
 Resolução Fernando Pessoa emprega o substantivo obscuridade em sentido figurado, como antônimo de celebridade, fama, designando com ele a condição de quem é desconhecido, ignorado.

03 -  Explique, com base no texto como um todo, a imagem empregada por Pessoa no segundo parágrafo: “tornam-se de vidro as paredes de sua vida doméstica”.
 Resolução A imagem das paredes de vidro sugere a ausência de privacidade a que a celebridade condena os seus “eleitos”, que devem suportar que mesmo os aspectos mais íntimos de sua vida – e especialmente estes – se tornem objeto de interesse geral e sejam esquadrinhados de forma vulgar e rebaixante

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