sábado, 19 de maio de 2018

CARTA: CARTA A MANUEL BANDEIRA - MÁRIO DE ANDRADE - COM GABARITO

Carta: Carta a Manuel Bandeira, São Paulo, 28-III-31.

             Manú, bom-dia.

     Amanhã é domingo pé-de-cachimbo, e levarei sua carta, (isto é vou ainda rele-la pra ver si a passo levar tal como está, ou não podendo contarei) pra Alcântara com Lolita que também ficarão satisfeitos de saber que você já está mais faqueirinho e o acidente não terá consequência nenhuma. Esse caso de você ter medo duma possível doença comprida e chupando lentamente o que tem de perceptível na gente, pro lado lá da morte, é mesmo um caso sério. Deve ser danado a gente morrer com lentidão, mas em todo caso sempre me parece inda, não mais danado, mas semvergonhamente pueril, a gente morrer e repente. Eu jamais que imagino na morte, creio que você sabe disso. Aboli a morte do mecanismo da minha vida e embora já esteja com meus trinta e oito anos, faço projetos pra daqui a dez anos, quinze, como si pra mim a morte não tivesse de “vim” ... como todos pronunciam.
            A ideia da morte desfibra danadamente a atividade, dá logo vontade da gente deitar na cama e morrer, irrita. Aboli a noção de morte pra minha vida e tenho me dado bem regularmente com esse pragmatismo inocente. Mas levado pela sua carta, não sei, mas acho que não me desagradava não me pôr em contato com a morte, ver ela de perto, ter tempo pra botar os meus trabalhos do mundo em ordem que me satisfaça e diante da infalível vencedora, regularizar pra com Deus o que em mim sobrar de inútil pro mundo.

                 (ANDRADE, Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Manoel Bandeira.
                                            Rio de Janeiro: Organização Simões, 1958, pp. 269-270).
Entendendo o texto:
01 – Embora procure manifestar para seu amigo Manú (Manoel Bandeira) uma visão prática e uma preocupação maior com a vida, Mário de Andrade deixa escapar certa preocupação com a vida após a morte. Releia a carta e, a seguir, explique em que passagem se pode verificar essa preocupação.
      No final da carta, Mário de Andrade manifesta a preocupação de “regularizar” com Deus aquilo que tiver feito “de inútil pro mundo”. Ou seja, Mário considera como “pecados”, ou como falhas pelas quais deverá prestar contas, toda a sua ação ou produção que não apresente valor ou utilidade para a vida dos outros homens. Vemos confirmado, assim, e existencialmente ampliado, o conceito que ele tinha de seu trabalho de escritor, que encarava como um serviço ao País, à cidadania e em geral à humanidade.

02 – Envolvido, como declara mais de uma vez em suas cartas, na criação de um discurso literário próprio, culto, mas com aproveitamentos de recursos e soluções da linguagem coloquial, Mário de Andrade apresenta nos textos de suas cartas soluções de ortografia, pontuação, variações coloquial de vocábulos e de regência que podem surpreender um leitor desavisado. Escreve, por exemplo, no último período do trecho citado, ver ela de perto, tal como se usa coloquialmente. Aponte a forma que teria essa passagem em discurso formal, culto.
      Reescrita conforme as normas a linguagem escrita culta, ver ela de perto se transforma em vê-la de perto.




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