quinta-feira, 8 de março de 2018

TEXTO: AS PALAVRAS - JEAN-PAUL SARTRE - COM INTERPRETAÇÃO/GABARITO


TEXTO: AS PALAVRAS


        Eu ainda não sabia ler, mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros. Meu avô foi ao patife de seu editor e conseguiu de presente Os contos do poeta Maurice Bouchor, narrativas extraídas do folclore e adaptadas ao gosto da infância por um homem que conservava, dizia ele, olhos de criança. Eu quis começar na mesma hora as cerimônias de apropriação. Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na “pagina certa”, fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxito trata-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: “O que queres que eu te leia, querido? As fadas?” Perguntei, incrédulo: “As Fadas estão aí dentro?” A história me era familiar: minha mãe contava-a com frequência, quando me levava, interrompendo-se para me friccionar com água-de-colônia, para apanhar debaixo da banheira o sabão que lhe escorregara das mãos, e eu ouvia distraidamente o relato bem conhecido; eu só tinha olhos para Anne-Marie, a moça de todas as minhas manhãs; eu só tinha ouvidos para a sua voz perturbada pela servidão; eu me comprazia com suas frases inacabadas, com suas palavras sempre atrasadas, com sua brusca segurança, vivamente desfeita, e que descambava em derrota, para desaparecer em melodioso desfiamento e se recompor após um silêncio. A história era coisa que vinha por acréscimo: era o elo de seus solilóquios. Durante o tempo todo em que falava, ficávamos sós e clandestinos, longe dos homens, dos deuses e dos sacerdotes, duas corças no bosque, com outras corças, as Fadas; eu não conseguia acreditar que se houvesse composto um livro a fim de incluir nele este episódio de nossa vida profana, que recendia a sabão e a água-de-colônia.
        Anne-Marie fez-me sentar à sua frente, em minha cadeirinha; inclinou-se, baixou as pálpebras e adormeceu. Daquele rosto de estátua saiu uma voz de gesso. Perdi a cabeça: quem estava contando? o quê? e a quem? Minha mãe ausentara-se: nenhum sinal de conivência, eu estava no exílio. Além disso, eu não reconhecia sua linguagem. Onde é que arranjava aquela segurança? Ao cabo de um instante, compreendi: era o livro que falava. Dele saíam frases que me causavam medo: eram verdadeiras centopeias, formigavam de sílabas e letras, estiravam seus ditongos, faziam vibrar as consoantes duplas: cantantes, nasais, entrecortadas de pausas e suspiros, rica em palavras desconhecidas, encantavam-se por si próprias e com seus meandros, sem se preocupar comigo: às vezes desapareciam antes que eu pudesse compreendê-las, outras vezes eu compreendia de antemão e elas continuavam a rolar nobremente para o seu fim sem me conceder a graça de uma vírgula. Seguramente, o discurso não me era destinado. Quanto à história, endomingara-se: o lenhador, a lenhadora e suas filhas, a fada, todas essas criaturinhas, nossos semelhantes, tinham adquirido majestade, falava-se de seus farrapos com magnificência; as palavras largavam a sua cor sobre as coisas, transformando as ações em ritos e os acontecimentos em cerimônias. Alguém se pôs a fazer perguntas: o editor de meu avô, especializado na publicação de obras escolares, não perdia ocasião de exercitar a jovem inteligência de seus leitores. Pareceu-me que uma criança era interrogada: no lugar do lenhador, o que faria? Qual das duas irmãs preferiria? Por quê? Aprovava o castigo de Babette? Mas essa criança não era absolutamente eu, e fiquei com medo de responder. Respondi, no entanto: minha débil voz perdeu-se e senti tornar-me outro. Anne-Marie, também, era outra, com seu ar de cega superlúcida: parecia-me que eu era filho de todas as mães, que ela era mãe de todos os filhos. Quando parou de ler, retomei-lhe vivamente os livros e saí com eles debaixo do braço sem dizer-lhe obrigado.

                       SARTRE, Jean-Paul. As palavras. Trad. J.Guinsburg.
                         6. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 33-5.

Entendendo o texto:
01 – As “cerimônias de apropriação” de que fala o texto (primeiro parágrafo) constituem um tipo de leitura? Comente.
     SIM, a leitura sensorial. O aluno deve perceber que essa leitura ocorre sempre, cotidianamente, em sua vida de estudante.

02 – A história das Fadas tinha um papel na relação entre mãe e filho. Releia atentamente o primeiro parágrafo e explique esse papel.
     Era o momento em que mãe e filho se isolavam do mundo e se pertenciam mútua e exclusivamente. O filho se concentrava nas palavras da mãe e se sentia livre na companhia dela e das criaturas do conto de fadas.

03 – Por que o narrador nos diz que sua mãe “adormeceu” (segundo parágrafo)? Essa imagem se revela importante para o desenvolvimento da narrativa?
     Ela passa a ser um intermediário entre o livro e ele, a quem o texto era dirigido. Ela perde sua autonomia de modelar a história e passa a ser mero reprodutor da história contada pelo livro.

04 – O que significa a “voz de gesso” de que fala o texto?
     A voz de quem lê o que fala, diferente da voz de quem simplesmente fala.

05 – “... era o livro que falava”. Comente essa frase, baseando-se nos dados que o texto oferece sobre a linguagem que o narrador então ouvia.
     O registro linguístico em que a história estava sendo contada fazia com que o narrador percebesse que não era mais a sua mãe a produtora do texto e modeladora da realidade nela contida: o texto estava pronto no livro.

06 – Em que consiste uma história “endomingada”? E o que significa dizer que “as palavras largavam a sua cor sobre as coisas”?
     O registro linguístico não era mais coloquial, mas sim formal. E a formalidade das palavras contagiava a história, que assumia ares mais cerimoniosos.

07 – Comente a ideia de que Anne-Marie tinha um “ar de cega superlúcida”.
     Era uma “cega superlúcida” porque não “via” nada, ou seja, não provinha mais dela a realidade contada na história; ainda assim, o livro concedia aa ela o total conhecimento sobre a história contada.

08 – É evidente no texto a surpresa que a palavra escrita traz ao narrador. Procure detectar as diferentes entre a experiência oral da linguagem e a experiência escrita baseando-se no que o texto nos diz. Concentre-se nas diferenças percebidas pelo narrador entre a narrativa oral e a narrativa escrita e na ideia expressa em: “... parecia-me que eu era filho de todas as mães, que ela era mãe de todos os filhos.”
     O aluno deve perceber que a história que fazia parte do cotidiano do narrador passou a ser mais impessoal, mais universal na forma que assumiu no livro.


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