quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

CRÔNICA: OS JORNAIS - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

CRÔNICA: OS JORNAIS
                        Rubem Braga

    Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:
         -- Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. Vejamos a história desse crime. “Durante os três primeiros anos o casal viveu imensamente feliz...” Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim:
         “Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, de 23 anos de idade, aproveitou-se de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada para abraça-la alegremente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em vista disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-o longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: Meu amor, ao que ele retorquiu: Deolinda. Na manhã seguinte, Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7:45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a gaiola de um canário-da-terra de propriedade do casal.”
         A impressão que a gente tem, lendo os jornais – continuou meu amigo – é que “lar” é um local destinado principalmente à prática de “uxoricídio”. E dos bares, nem se fala. Imagine isto:
         “Ontem, cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Ananias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou no bar Flor Mineira, à rua Cruzeiro, 524, em companhia de seu colega Pedro Amâncio de Araújo, residente no mesmo endereço. Ambos entregaram-se a fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joca de tal, de residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos dois amigos, Joca manifestou desejo de sentar-se à sua mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto, insistiu, seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido empregado, que aceitou a nota que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos que se retiraram do bar alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio do Encantado, e a noite foi bastante fresca, tendo dona Maria, sogra do comerciário Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito, 14, senhora que sempre foi muito friorenta, chegando a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de goiabada.”
         E meu amigo:
         -- Se um repórter redigir essas duas notas e leva-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida...

                                    Pequena antologia do Braga. Rio de Janeiro:
                                                                  Record, 1997, p. 109-111.

Entendendo o texto:
01 – Observe: a crônica, quase toda ela, é constituída de falas de uma amigo.
     a) Identifique as únicas frases da crônica que não são falas do amigo.
      A primeira: Meu amigo lança fora...; a segunda: ...continuou meu amigo..., no quarto parágrafo; e, no final: E meu amigo:

     b) Dê sua opinião:
- O autor (o cronista) assume o papel de narrador para contar o ponto de vista que um amigo (que existe mesmo) tem a respeito das notícias que os jornais publicam?
Ou:
- O autor cria um personagem – o amigo – para, por meio dele, expressar seu ponto de vista pessoal a respeito das notícias que os jornais publicam?
      A expectativa é que o aluno escolha a segunda opção, mas a primeira pode ser aceita, se adequadamente justificada.

02 – O amigo cita:
       -- Alguns exemplos de fatos que os jornais noticiam – fatos que tem “conteúdo jornalístico”, são notícias.
       -- Dois contraexemplos: fatos que os jornais não noticiam – não tem “conteúdo jornalístico”, são não notícias.
        a) Que exemplos o amigo dá de notícias?
            Desastre, acidente de mina, surto de peste, crime.

        b) Que exemplos o amigo dá de não notícias?
             Felicidade de um casal no lar, encontro alegre de amigos num bar, noite de paz num subúrbio, sonho de uma avó.

03 – O amigo encontra no jornal o crime de um sapateiro que matou a mulher que o traía.
        - Segundo o amigo, o que é que o jornal não noticia a respeito desse crime? Por que não notícia?
         Não noticia a felicidade em que viveu o casal anteriormente, porque esse fato não tem conteúdo jornalístico.

04 – Localize as frases na crônica e responda às questões:
      “Você acredita nisso que os jornais dizem?”
     a) Nisso: em que não se deve acreditar?
      Que no mundo só acontecem desastres e desgraças.

           “Eu não afirmo que isso seja mentira.”
     b) Isso: o que não é mentira?
      O crime do sapateiro ou, mais genericamente, os fatos que o jornal notícia.

     c) Observe a aparente contradição entre estas duas frases:
- Não se deve acreditar no que os jornais dizem.
- Não se pode afirmar que seja mentira o que os jornais dizem.
Mostre que a contradição é só aparente – segundo o amigo:
- Lendo os jornais, há algo em que não se deve acreditar. O quê?
- Lendo os jornais, há algo em que se pode acreditar. O Quê?
      Não se deve acreditar que no mundo só acontecem desastres e desgraças. Pode-se acreditar no que o jornal notícia.

05 -  Recorde a primeira frase da crônica e observe a palavra destacada:
       “Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:”
       - Se, em seguida, o amigo reclama contra o que lê no jornal, que só anuncia desastres e desgraças, de onde vem essa sua alegria?
       Da lembrança de que no mundo acontecem também coisas boas, que os jornais não noticiam; da percepção de que a imagem negativa que o jornal dá do mundo é falsa, não acontecem apenas desastres e desgraças.


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