terça-feira, 2 de maio de 2017

VIDAS SECAS - GRACILIANO RAMOS - (FRAGMENTO) COM GABARITO

TEXTO LITERÁRIO: VIDAS SECAS
                                       Graciliano Ramos


        Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.
        Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao bingo, pôs-se a fumar regalado.
        --- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
        Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
        Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
        --- Você é um bicho, Fabiano.
        Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.
        Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.
        --- Um bicho, Fabiano.
        Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.
        Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os mandacarus e os xíquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinha Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra.
        Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.
        Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. (...) Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que se demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.
        Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se:
        --- Você é um bicho, Baleia.
        Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio, Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.

  RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 27. ed. São Paulo, Martins, 1970. p. 53-5.

Juazeiro: árvore característica da caatinga nordestina.
Camarinha: quarto; esconderijo de malfeitores no mato.
Gretado: rachado.
Esgaravatar: limpar.
Aió: bolsa de caça.
Binga: lampião de querosene; isqueiro tosco.
Imbu: fruto do imbuzeiro; árvore própria da caatinga.
Mucunã: espécie de planta.
Quipá: vegetação nordestina.
Mandacaru: grande cacto.
Xiquexique: espécie de cacto.
Catingueira: arbusto típico da caatinga.
Baraúna: espécie de árvore.
Gutural: relativo ou pertencente à garganta.
Cambaio: de pernas fracas, trôpego.

1 – “Fabiano ia satisfeito.” Qual é a causa dessa satisfação?
       A sensação de estar arrumado.

2 – O que leva Fabiano a sentir-se um homem?
       O fato de ter encontrado um lugar para se instalar juntamente com toda a sua família.

3 – Sentir-se homem foi imprudente de sua parte. Como ele se sente de fato?
       Ele se sentia um bicho, ocupado em tomar conta de coisas alheias.

4 – Fabiano e sua família não podiam integrar-se à terra em que estavam. A que fato isso se deve?
       Isso se deve ao fato de a terra não pertencer a eles.

5 – No texto há três referências à animalização de Fabiano. Destaque os números das linhas em que tais referências ocorrem.
       Linhas 24, 47,58 e 59.

         

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