terça-feira, 2 de maio de 2017

GABRIELA, CRAVO E CANELA - JORGE AMADO -(FRAGMENTO) COM GABARITO

GABRIELA, CRAVO E CANELA
Jorge Amado

        Só Gabriela parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada muitas vezes aberta na hora a golpes de facão, na mata virgem. Como se não existissem as pedras, os tocos, os cipós emaranhados. A poeira dos caminhos da caatinga a cobrira tão por completo que era impossível distinguir seus traços. Nos cabelos já não penetrava o pedaço de pente, tanto era pó se acumulara. Parecia uma demente perdida nos caminhos. Mas Clemente sabia como ela era deveras e o sabia em cada partícula de seu ser, na ponta dos dedos e na pele do peito. Quando os dois grupos se encontraram, no começo da viagem, a cor do rosto de Gabriela e de suas pernas era ainda visível e os cabelos rolavam sobre o cangote, espalhando perfume. Ainda agora, através da sujeira a envolve-la, ele a enxergava como a vira no primeiro dia, encostada numa árvore, o corpo esguio, o rosto sorridente, mordendo uma goiaba.
        --- Tu parece que nem veio de longe...
        Ela riu:
        --- A gente tá chegando. Tá pertinho. Tão bom chegar.
        Ele fechou ainda mais o rosto sombrio:
        --- Num acho não.
        --- E por que tu não acha? – levantou para o rosto severo do homem seus olhos ora tímidos e cândidos, ora insolentes e provocadores. – Tu não saiu para vir trabalhar no cacau, ganhar dinheiro? Tu não fala noutra coisa.
        --- Tu sabe por quê – resmungou ele com raiva. – Pra mim esse caminho podia durar a vida toda. Num me importava...
        No riso dela havia certa mágoa, não chegava a ser tristeza, como se estivesse conformada com o destino:
        --- Tudo que é bom, tudo que é ruim também termina por acabar.
        Uma raiva subia dentre dele, impotente. Mais uma vez, controlando a voz, repetiu a pergunta que lhe vinha fazendo pelo caminho e nas noites insones:
        --- Tu não quer mesmo ir comigo pras matas? Botar uma roça, plantar cacau junto nós dois? Com pouco tempo a gente vai ter roçado seu, começar a vida.
        A voz de Gabriela era cariciosa mas definitiva:
        --- Já te disse minha tenção. Vou ficar na cidade, não quero mais viver no mato. Vou me contratar de cozinheira, de lavadeira ou pra arrumar casa dos outros...
        Acrescentou numa lembrança alegre:
        --- Já andei de empregada em casa de gente rica, aprendi cozinhar.
        --- Aí tu não vai progredir. Na roça, comigo, a gente ia fazendo seu pé-de-meia, ia tirando pra frente...
        Ela não respondeu. Ia pelo caminho quase saltitante. Parecia uma demente com aquele cabelo desmazelado, envolta em sujeira, os pés feridos, trapos rotos sobre o corpo. Mas Clemente a via esguia e formosa, a cabeleira solta e o rosto fino, as pernas altas e o busto levantado. Fechou ainda mais o rosto, queria tê-la com ele para sempre. Como viver sem o calor de Gabriela?

    AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. São Paulo, Martins, s.d. p. 82-3.

Cangote: nuca.
Insolente: atrevido, ousado, arrogante.
Tenção: intenção, plano.

1 – O que fazia com que Gabriela parecesse uma “demente perdida nos caminhos”?
       O fato de ela estar toda suja, coberta pela poeira da caatinga.

2 – Os olhos de Gabriela são reveladores de algumas de suas características. Que características são essas? Responda, utilizando substantivos abstratos.
       Candura, timidez, insolência e provocação.

3 – Por que Clemente sentia raiva?
       Porque Gabriela não queria ficar com ele no campo: ela queria mesmo era tentar a vida na cidade.

4 – Transcreva do texto as expressões que demonstram a sensualidade de Gabriela.
       “Os cabelos rolavam sobre o cangote, espalhando perfume”; “o corpo esguio”; “A voz de Gabriela era cariciosa”; “Clemente a via esguia e formosa, a cabeleira solta e o rosto fino, as pernas altas e o busto levantado”.
       


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