quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

TEXTO: DA DIFÍCIL ARTE DE REDIGIR UM TELEGRAMA - JÔ SOARES - COM GABARITO

TEXTO: DA DIFÍCIL ARTE DE REDIGIR UM TELEGRAMA
                 JÔ SOARES

          Há uma história famosa a respeito de uns parentes que tinham que comunicar por telegrama, a uma senhora que estava viajando, o falecimento de uma irmã. Regiu a nota. Depois de alguns minutos mostrou o resultado do seu trabalho: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. TUA IRMÃ MORREU.” Todos leram e um dos tios fez o seguinte comentário:
– Eu acho que não está bom. Afinal de contas, vocês sabem que ela é cardíaca, está viajando e um telegrama assim pode ser um choque.
Todos concordaram, inclusive um outro primo afastado que era meio sovina e achou o telegrama muito longo:
– Depois, o preço que se paga por palavra, isso não é mais um telegrama, é um telegrana.
Ninguém riu do infame trocadilho, mesmo porque, velório não é lugar para gargalhadas. Foi a vez de o cunhado tentar redigir uma forma mais amena que não assustasse a senhora em passeio. Sentou-se e escreveu: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. SUA IRMÃ PASSANDO MUITO MAL.” Novamente o telegrama não foi aprovado. Um irmão psicólogo observou:
– Não sejamos infantis. Se ela está viajando pela Europa e recebe esta notícia, não vai acreditar na história de “passando muito mal”. Sobretudo com “volte correndo” no meio.
– Também concordo – falou o primo afastado sempre pensando no custo. Então o genro aproximou-se:
– Acho que tenho a forma ideal.
Pegou no bloco e rabiscou rapidamente: “INTERROMPA VOAGEM E VOLTE DEVAGAR. TUA IRMÃ PASSANDO MAIS OU MENOS.” Todos examinaram atentamente o telegrama. A filha reclamou:
– Vocês acham que mamãe é boba? Se a gente escrever que a titia está passando mais ou menos e que ela pode voltar devagar, ela vai adivinhar que todas estas precauções são pelo fato de ela ser cardíaca e que na realidade a irmã dela morreu!
– Concordo plenamente – disse o facultativo da família que era também sobrinho da senhora em questão. Resolveu, como médico, escrever o telegrama: “PACIENTE FORA DE PERIGO. VOLTE ASSIM QUE PUDER. PACIENTE TUA IRMÔ.
De todas as fórmulas até então apresentadas esta foi a que causou mais revolta.
– Que troço imbecil – gritou o netinho que passava pela sala no momento em que a mensagem era lida. Puseram o menino para fora da sala, mas no íntimo a família concordava com ele.
– Não, isso não. Se a gente manda dizer que ela está fora de perigo, para que vamos pedir que ela interrompa a viagem? – argumentou o tio.
– Também acho – responderam todos num coro de aprovação. O filho mais velho resolveu tentar. Pensou bem, ponderou, sentou-se, molhou a ponta do lápis na língua e caprichou: “SE POSSÍVEL VOLTE. TUA IRMÃ SAUDOSA. PASSANDO QUASE MAL. POR FAVOR ACREDITE. CUIDADO CORAÇÃO. VENHA LOGO. SAUDADES SURPRESA”.
– Realmente, esse bate todos os recordes! – disse uma nora professora. Em primeiro lugar, não é “se possível”, ela tem que voltar mesmo. Em segundo lugar, “saudosa” tem duplo sentido. Em terceiro lugar, ninguém passa “quase mal”. Ou passa mal ou bem. “Quase mal” e “quase bem” é a mesma coisa. “Por favor acredite” é um insulto à família toda. Ninguém aqui é mentiroso. Depois, “cuidado coração” não fica claro. Como telegrama não tem vírgula, ela pode pensar que a gente está dizendo “cuidado, coração”, já que a palavra coração também é usada como uma forma carinhosa de chamar os outros. Por exemplo: “oi coração, tudo bem?” E finalmente a palavra “surpresa” no telegrama chega a ser um requinte de crueldade. Qual é a surpresa que ele pode esperar?
– Ela pode pensar que a titia está esperando nenê – falou um sobrinho.
– Aos noventa anos de idade?
Abandonaram a ideia rapidamente. Seguiu-se um longo período de silêncio em que a família andava de lá para cá, pensando numa solução. Pela primeira vez estavam se dando conta de que não era tão fácil assim mandar um telegrama. Serviu-se o costumeiro cafezinho, enquanto cada qual do seu lado procurava uma maneira de escrever para a senhora em viagem sem que isto tivesse consequências desastrosas. De repente o irmão psicólogo explodiu num grito eurekiano de descoberta:
– Achei!
Escreveu febrilmente no papel. O telegrama passou de mão em mão e foi finalmente aprovado por todo mundo. Seu texto dizia: “SIGA VIAGEM. DIVIRTA-SE. TUA IRMÃ ESTÁ ÓTIMA.”
(JÔ SOARES. O Globo. 26/10/1975)
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Baseado no texto acima resolva as questões que se seguem.
1. Relacione as colunas de acordo com o significado das palavras:
a. aquele que sofre do coração                    1.(    ) precauções
b. péssimo, detestável                                 2.(    ) trocadilho
c. cautela, prevenção                                  3.(    ) cardíaco
d. injúria, ofensa, ultraje                            4.(    ) infame
e. jogo de palavras de duplo sentido          5.(    ) insulto
2. Muitas palavras se associam por uma espécie de ligação de sentido, isto é, uma palavra pode sugerir uma série de outras que, embora não sejam sinônimas, com elas se relacionam. A esse agrupamento damos o nome de área semântica. Por exemplo: medicina -> médico, paciente, doença, hospital, facultativo, bisturi, etc.
Retire do texto palavras ou expressões que pertencem à área semântica de:
a)    família
b)    formas de escrever
3. Que fato desencadeia a narrativa?
4. Por que os parentes estavam tão preocupados com a redação do telegrama?
5. Quem fez a redação do telegrama que causou maior revolta?
6. Por que os familiares colocaram o netinho para fora da sala?
7. Como se pode interpretar a atitude do garoto?
8. Por que a redação feita pelo filho mais velho não foi aceita?
9. Que aspectos do comportamento humano são retratados pelo Autor nessa história?
10. Há um famoso provérbio árabe que diz: “A primeira vez em que tu me enganares a culpa será tua; mas na segunda vez, a culpa será minha.” Como você entende essa afirmativa?
11. De acordo com a característica dada, identifique os personagens da história relacionados à viajante:
a) pão-duro, sovina
b) psicólogo
c) convencido
d) médico
e) crítico
f)  analista minucioso
12. Transcreva do texto, o trecho que resume a história.
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GABARITO
Questão 1:
1. C     2. E     3. A      4. B    5. D
Questão 2:
a)    família: parentes, irmã, primo, tios, um outro primo afastado, cunhado, irmão psicólogo, genro, filha, mamãe, titia, sobrinho, netinho, tio, filho mais velho, nora.
b)    Formas de escrever: redigiu, rabiscou, molhou a ponta do lápis na língua e caprichou.
Questão 3. A morte da irmã de uma senhora que estava viajando.
Questão 4. Porque a senhora que estava viajando era cardíaca.
Questão 5. O médico da família, sobrinho da viajante.
Questão 6. Porque emitiu uma palavra de julgamento a respeito da redação de um dos familiares, que naturalmente era mais velho que ele. 
Questão 7. Inoportuna, mas ele demonstrou que tinha senso crítico.
Questão 8. Em virtude da análise feita pela nora, que era professora e pela ideia de qual surpresa a viajante poderia ter ao ler o telegrama.
Questão 9. A preocupação das pessoas em amenizar a verdade faz com que se criem “pequenas” mentiras.
Questão 10. Resposta pessoal. Pode-se entender que se somos enganados pela primeira vez por alguém, a responsabilidade da mentira será de quem a disse. Se novamente a mesma pessoa me disser outra mentira, aí a responsabilidade será minha que acreditei em alguém que mentiu uma primeira vez. Resumindo: quem mente uma vez pode estar dizendo novas mentiras depois, e não deve ter crédito.
Questão 11:
a)    primo afastado
b)    irmão
c)    genro
d)    sobrinho
e)    netinho
f)      nora
Questão 12:
“Há uma história famosa a respeito de uns parentes que tinham que comunicar por telegrama, a uma senhora que estava viajando, o falecimento de uma irmã. Reuniram-se em volta de uma mesa e toca a escrever.”


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